A PRAGMÁTICA DO (DES) ENTENDIMENTO
Jair Antonio de Oliveira
Resumo
O uso da linguagem nas relações interpessoais dentro das organizações deve convergir para ações de cooperação e compreensão entre os indivíduos conforme normas institucionalizadas socialmente. No entanto, é fácil observar no cotidiano das interações a violação a esse preceito básico, ou seja: transforma-se o que é regra: a busca do entendimento mútuo, em exceção; e o que é exceção: o desentendimento, em regra para as ações linguísticas. Para explicar tal deslocamento é necessário empregar diferentes habilidades, níveis e conhecimento linguístico e semiótico exemplificados neste trabalho pelo Princípio Pragmático da Ironia e da polidez.
Palavras-Chave: Comunicação; Organização; Pragmática.
1 INTRODUÇÃO
Os signos verbais (as palavras) e não verbais (gestos, imagens) são indispensáveis para o estabelecimento de relações interativas e comunicação entre os indivíduos. No entanto, as restrições institucionalizadas socialmente, as crenças, os interesses coletivos e individuais, acabam forçando os usuários dessas linguagens a não empregá-las de forma transparente. Obviamente, a ideia de transparência é questionável, mas como precisamos de uma noção de trabalho, “transparência”, aqui, tem o mesmo sentido que “sinceridade”. Assim, quando os indivíduos não utilizam a linguagem de forma sincera, tal procedimento dá origem a equívocos, mal-entendidos, silêncios, ou os leva a dizer, por meio dos enunciados, algo completamente distinto do que é considerado “sentido usual” para o que é dito.
Nesse viés, empregamos uma abordagem Pragmática, definida como “a ciência do uso da linguagem em contextos sociais” (HABERLAND; MEY, 1977, p.1), para explicar um caso de relação interpessoal no âmbito organizacional que não é transparente pelo fato de o interlocutor não “sacar” a intenção comunicativa do falante, ou seja: o ouvinte, ao não estabelecer uma relação entre a linguagem em uso e a situação comunicativa, desconsidera que o sentido de uma sentença, ou grupo delas, existe em função da intenção do locutor e que essa perspectiva implica valorizar as regras de uso de cada contexto.
Na perspectiva Pragmática, a origem do sentido está no próprio uso que se faz da linguagem. Perguntar pelo sentido de uma palavra ou frase equivale a perguntar: com que fins se usou essa palavra ou frase. Dessa forma, investigar o sentido é investigar as regras de uso que o estão definindo; investigar o contexto em que esse uso está sendo feito (OLIVEIRA, 2002, p. 14).
É preciso ressaltar que a Pragmática que adotamos traz como pressuposto a ideia de que as ações intencionais não dependem de uma relação causa-efeito, mas que possuem “motivos” que nos permitem entendê-las. Os motivos estão interligados na rede de crenças e desejos e constituem uma espécie de continuum, nem sempre facilmente identificáveis. Diante do caráter assimétrico das relações interpessoais e das contradições existentes no meio social (ampliados no contexto organizacional), a manutenção de um nível de cooperação e compreensão entre os indivíduos irá depender da identificação dos interesses em jogo. Para que isso aconteça, é preciso uma pluralidade de habilidades, níveis e sistemas de conhecimento linguístico e semiótico. Uma forma de exemplificar essa questão, em nível elementar e com a brevidade requerida, é por meio dos Princípios Pragmáticos da Ironia e da polidez.
2 OS PRINCÍPIOS PRAGMÁTICOS DA IRONIA E DA POLIDEZO Princípio Pragmático da Ironia foi apresentado inicialmente por Leech (1983) para justificar o emprego de formas não polidas sem a violação explícita do Princípio de Polidez (PP), cujas máximas são:
1.Máxima de Tato: Minimize custos para o Outro. Maximize benefícios para o Outro;
2.Máxima de Generosidade: minimize benefícios para si. Maximize custos para si;
3.Máxima de Aprovação: minimize críticas para o Outro. Maximize elogios para o Outro;
4Máxima de Modéstia: minimize elogios para si. Maximize censura para si;
5.Máxima de Concordância: minimize discordância entre si e o Outro. Maximize concordância entre si e o Outro;
6.Máxima de Simpatia: minimize antipatia entre si e o Outro. Maximize simpatia entre si e o Outro.
Pragmaticamente, o Princípio de Ironia não difere da “ironia” enquanto fenômeno linguístico sustentado pela contradição (o locutor diz X embora pretenda significar ~X ). Leech (1983, p. 82) afirma: ”Se você quer ofender alguém, faça-o de modo que não conflite com o Princípio de Polidez; mas de forma que o interlocutor alcance o ponto ofensivo de sua observação indiretamente, por meio de uma implicatura.” Por exemplo:
(1) A: O jornal traz uma matéria afirmando que Lula está viajando demais...
B: Qual é! O presidente jamais sai de Brasília!
Qualquer pessoa com razoável conhecimento de mundo perceberá que o enunciado de B é flagrantemente falso, isto é: explicitamente insincero. B não pretende mentir para A, mas aponta para um significado oposto ou diferente do que é literalmente dito, como:
(2) B: Lula para pouco em Brasília.
Esse sentido proposto é sustentado pela hipótese de violação de uma das máximas conversacionais conforme Grice (1975). Nessa perspectiva, a ironia está associada à expressão de um sentimento, atitude ou avaliação negativa. Não se pode dizer alguma coisa ironicamente a menos que isto reflita uma hostilidade, um julgamento depreciativo ou um sentimento como a indignação ou desprezo. Ao associar a ironia com uma avaliação negativa em relação ao interlocutor, Grice retoma a concepção clássica desse fenômeno. Uma postura semelhante àquela defendida pelos antigos retóricos que viam na ironia uma espécie de tropo e, como tal, deve ter o seu sentido figurado substituído por um sentido literal. A diferença é que no caso de Grice, o significado figurado é substituído por uma implicatura.
Grice restringiu a produção de enunciados irônicos aos casos de violação de uma de suas máximas conversacionais:
• Máxima de Qualidade: seja sincero;
• Máxima de Quantidade: fale apenas o necessário;
• Máxima de relação: seja relevante;
• Máxima de Modo: seja claro.
No entanto, há situações em que o falante, pretendendo ser irônico expressa literalmente a verdade, ou seja, não transgride uma máxima conversacional. Ou casos onde, simultaneamente, o falante pretende transmitir o que é realmente dito e o que está implicado conversacionalmente. Por exemplo:
(3) A: Eu tive um péssimo dia hoje. (Dito por um torcedor do Atlético Paranaense após a terceira derrota consecutiva de seu time).
Não se trata de um caso onde ocorre a mera violação de uma das máximas griceanas (modo, relação, quantidade ou qualidade), mas uma situação onde há ambiguidade devido à possibilidade de não existir tal transgressão. Mesmo distribuindo a análise da ironia através de todas as máximas, pouco se pode fazer além de ilustrar como a explícita violação de uma delas pode ou não resultar em ironia. Em outras palavras, a compreensão fica restrita aos enunciados emitidos em conformidade com as propriedades específicas de cada máxima e nem todas as ironias podem ser recuperadas por esse critério. A rigor, o interlocutor fica em dúvida ou hesita diante de enunciados irônicos, pois não tem certeza se ocorreu alguma violação das máximas. É um conflito semelhante ao fenômeno da “dupla-vinculação” (WATZLAVICK, 1967), no qual uma intimação, por exemplo, deve ser desobedecida para ser obedecida.
3 OS PRINCÍPIOS PRAGMÁTICOS NA COMUNICAÇÃO INTERPESSOAL
Vamos imaginar uma situação onde A é uma bela jovem e no momento encontra-se sentada defronte a sua escrivaninha no escritório onde trabalha. B se aproxima e senta-se muito próximo. B é seu colega de trabalho e há muito está interessado em namorá-la. A desconhece o interesse de B e o trata, no dia-a-dia do escritório, segundo as regras formais típicas desse ambiente e com a polidez requerida para circunstâncias burocráticas. B, no entanto, tem associado as diversas manifestações polidas de A como uma demonstração de afeto e vislumbra um futuro romance. A sentindo-se incomodada pelo fato de B ter sentado muito próximo diz:
(4) A: Venha mais perto!
Trata-se de um enunciado irônico onde a intenção de A é significar o oposto do que é dito literalmente. A diz X e o ouvinte B está autorizado a inferir do contexto do enunciado que isso implica em: não faça X. Trata-se de uma situação clássica de ironia, onde o ironizado deve perceber a contradição entre o que é dito e as circunstâncias em que se encontra.
Em outro contexto, A e B estão reunidos com os demais funcionários da empresa em que trabalham para assistir a uma palestra. O auditório ainda tem vários lugares disponíveis e B, percebendo que A encontra-se ao lado de uma cadeira desocupada, senta-se nesse local e aproxima a sua cadeira ainda mais de A. Constrangida pela proximidade incômoda de B mas não desejando ser grosseira A diz:
(5) A: Venha mais perto!
A espera que B capte o “tom” específico do enunciado, convencionado como irônico na cultura em que vivem e, observando as condições concretas do contexto em que se encontram no momento, se afaste. Entenda-se como condições concretas aqui o ambiente organizacional, as circunstâncias da palestra - um certo formalismo, a presença de superiores e outros funcionários, a necessidade de se prestar atenção ao que será dito etc. B, no entanto, não tem certeza de que ocorreu a violação de uma das máximas griceanas e nem garantias de que determinado tom é próprio de ironias. Diante disto, B coloca-se em uma situação conflitante, típica da “dupla-vinculação”. Hipoteticamente, duas respostas são possíveis, embora ambas apresentem problemas para B :
1Situação 1: B obedece A e se aproxima ainda mais; neste caso vai ter que se apoiar no ombro ou corpo de A pois estará, literalmente, no colo de A. O problema, no entender de B, é que a situação inusitada pode irritar A e atrapalhar o almejado romance.
2Situação 2: B desobedece (na realidade estaria obedecendo) e se afasta. Como não possui evidências de transgressões às máximas de Grice, pode irritar A por desobedecer e assim atrapalhar o almejado romance.
B tem que apostar se A está sendo sincera, mentindo ou ironizando. Segundo Mey (1993, p. 207), no caso de apostas, há muitas expressões que funcionam como uptake verbal indicado para essas situações. No entanto, há outras expressões, algumas nunca ouvidas anteriormente, outras não verbalizadas, que funcionam como meio de se reconhecer uma aposta e, dadas as circunstâncias, contarão como uptake indicado. De qualquer forma, B encontra-se em um quadro conflitante e, se A estiver mentindo, o problema é maior, pois a mentira, ao contrário da ironia, geralmente não envolve implicatura e por isso requer muito esforço para ser percebida (quando o é). Por exemplo: supondo que B, após ouvir o enunciado irônico (5), que pretende significar o contrário do que literalmente expressa, e, ainda sem captar o ato ilocucionário do enunciado, senta-se mais próximo de A, ela pode retrucar:
(6) A: É mentira!
Mesmo que A, em qualquer momento, resolva de fato revelar a natureza de seu ato ilocucionário, isto não oferece garantia para B do que “realmente” está em jogo, ou seja: o enunciado (6) pode ser apenas uma fórmula codificada de linguagem (um clichê), e não a intenção comunicativa “real” de quem fala. É importante observar que os atos de fala providenciam uma espécie de “mini cenário” do que acontece na interação linguística e propõem um caminho simples para explicar as sequências, mais ou menos previsíveis, de uma interação normal. Mas, como ressalta Mey (ibidem, p. 207): “certas condições devem ser preenchidas a fim de que os atos de fala desempenhem esses papéis; muitas das quais não são normalmente encontradas na concepção clássica da representação discursiva”.
Ironia, mentira e os atos polidos constituem atos pragmáticos cujos sentidos só podem ser apreendidos na globalidade da situação em que estão envolvidos os interlocutores. A e B, por exemplo, devem compartilhar o mesmo universo linguístico e suas regras de uso; deve haver certa compatibilidade entre as suas crenças e o conhecimento das restrições contextuais. Obviamente, repertórios linguísticos e conhecimento de mundo nunca são completamente equivalentes, mas o apaixonado B deve saber que no contexto sociocultural em que vive, um modelo de entonação enfática é um mecanismo para enunciar uma advertência, uma ameaça ou uma ordem. B deve levar em conta que há uma assimetria entre o nível fonético e o referencial a fim de que a execução do enunciado não seja caracterizada, em primeiro plano, por uma entonação ameaçadora; e em segundo plano, por uma expressão vocativa afetiva. Isso também se aplica para o emprego de gírias, termos técnicos, regionalismos e palavras estrangeiras. Com certeza, as dúvidas de B aumentariam se A empregasse uma expressão com que não estivesse familiarizado:
(7) A: Aprochegue-se mais!
“Aprochegar” é um termo usado em algumas regiões do Brasil em situações informais e de familiaridade entre os interlocutores. Segundo Ferreira (1975, p.121), significa algo como: “chegar mais próximo”. Assim, o enunciado (7) pode ser entendido como: venha mais (+ mais) perto! Expressões que não são usuais para ambos os interlocutores devem ser explicitadas, pois as palavras não são “recipientes” que carregam marcas específicas para a ironia, mentira ou polidez. Assim, mesmo que B entenda o enunciado (7) como:
(8) A: Venha mais pertinho!
Ainda são necessárias mais especificações contextuais para que B perceba a intenção comunicativa em jogo, pois o emprego do diminutivo, nesse caso, não garante nenhum efeito inusitado. O uso do sufixo “-inho” é rotineiro em expressões afetivas bem como em ironias e sarcasmos. Pode-se imaginar uma situação em que A, com o propósito de se fazer entender por B, agite as mãos cerradas simultaneamente ao emitir (8) ou faça determinadas expressões faciais ou corporais que denotem repulsa, desdém. Mas como tais gestos também têm grande dependência sociocultural e as significações decorrentes de seus usos variam de acordo com a época e o local, alguns cuidados devem acompanhar o emprego de expressões não verbais.
Vamos aventar a possibilidade de A, a fim de expressar o seu descontentamento pela proximidade de B, mostrar a língua para o colega importuno. O insuspeito B pode imaginar que A está com “sapinho” (aftas que aparecem na mucosa bucal) e por isso faz esse movimento. E, se o sujeito que vai ministrar a palestra para A e B for tibetano, e perceber o movimento labial de A, poderá mostrar a sua língua em retribuição, pois em sua terra natal a expressão é uma espécie de cumprimento aos estrangeiros. Logicamente, em uma ação interativa real é difícil imaginar alguém tão néscio que não perceba tantas pistas, pois mesmo que o interlocutor não detecte a verdadeira intenção do falante, ficará de sobreaviso diante do caráter espalhafatoso de tais manifestações.
Não vamos entrar em considerações sobre os usos linguísticos e não linguísticos associados a comportamentos esquizofrênicos ou histéricos, campo que não é da Pragmática; embora a interação entre A e B não se resuma a meramente seguir regras de uso da linguagem. Isso não descarta um componente patológico, mas pode reduzir o impacto irônico enquanto objeto intencional da conversação. Na verdade, uma das questões centrais no diálogo é a de determinar quais são as regras que estão sendo seguidas por A e B a cada mudança de nível de compreensão, isto é: B deveria “sacar” que as regras aplicadas por A no cotidiano do escritório, convencionais para essas circunstâncias, não estavam mais sendo seguidas no momento em que o enunciado (5) “venha mais perto” foi emitido. Assim, deveria aplicar outras regras interpretativas de acordo com o novo nível de compreensão.
Faltou sincronização entre os interlocutores para perceber a mudança de nível de compreensão que, inclusive, deveria ter sido “preparada” por A. A devoção ao papel social representado por A no cotidiano do escritório agora não significa mais nada, e o que era simulação (fingir ser o que não se é = mentira) transforma-se me dissimulação (fingir não ser o que se é = ironia). “Dissimular deixa intacto o princípio da realidade: a diferença continua a ser clara, está apenas disfarçada; enquanto que a simulação põe em causa a diferença do verdadeiro e do falso, do real e do imaginário” (BAUDRILLARD, 1991, p.9-10). De uma perspectiva pragmática, acontecimentos subjetivos, nesse caso a simulação e a dissimulação, devem ser interpretados em termos de um vocabulário de ações intencionais.
Quando se aponta para a necessidade de B “sacar” que houve uma mudança de nível de compreensão por parte de A para a aplicação de novas regras interpretativas, remete-se à negociação pragmática. Nesse processo é preciso detectar bem mais do que é assinalado, o que pode ser dito e o que não pode ser dito, ou como é dito, por quem é dito, onde é dito e com que propósito é dito. “Sacar” integra a negociação pragmática, mas não é uma simples inferência que preenche esta ou aquela lacuna conversacional e nem o mero decodificador de sinais. Trata-se de um fato necessário e pressuposto, de certa forma uma pré-condição para a comunicação, pois é vital que o usuário da linguagem deixe claro em que nível está operando para que o seu interlocutor distinga os diferentes usos com diferentes propósitos. Essa condição torna-se muito mais necessária e relevante na escrita do que na oralidade. Na escrita, o autor dispõe do auxílio dos verbos e dos sinais gráficos para especificar a intenção comunicativa; no entanto, tais recursos são insuficientes quando não há, entre os interlocutores, compatibilidade entre os conhecimentos de mundo, crenças e a situação representada no texto. É necessário observar que as crenças individuais estão em permanente intercurso em relação a outras formas de pensar e organizar experiências; de modo que as condições preparatórias necessárias para que o leitor possa “sacar” a intenção escrita exigem espaço físico (o espaçamento em que a mensagem será veiculada), conhecimento de mundo e habilidades cognitivas.
Quando A produziu o enunciado (4) não levou em conta esses aspectos e B, naturalmente, focalizou a sua atenção apenas nos eventos que acredita conhecer, ou seja: está apaixonado e as ações de sua interlocutora reforçam os seus pressupostos . O que B acredita conhecer está, de certa forma, pré-estabelecido no contexto em que vive e inclui os condicionamentos relativos às formas cooperativas, polidas, rituais de aproximação etc; procedimentos que determinam o modo como uma interação deve ser conduzida. É claro que a conduta de A não é focalizada por B como sendo simplesmente cooperativa ou polida, mas insinuante e sedutiva, onde os sorrisos, postura corporal e modos de vestir-se adquirem uma conotação provocante aos seus olhos. Não há ingredientes patológicos no comportamento de B, mas um problema de incompreensão. A e B não “sacaram” que estão operando em níveis diferenciados de compreensão. Os interesses divergentes os levam a focalizar os eventos de maneira díspar. Até o momento em que A produziu o enunciado (4) ambos agiam como se estivessem focalizando igualmente o mesmo campo, o que não correspondia à realidade “(...) diferenças de focalização causam problemas de compreensão que só são detectados se ocorrerem problemas maiores de compatibilidade” (KOCH; TRAVAGLIA, 1989, p. 82). A identificação da incompatibilidade entre A e B provavelmente não ocorreria com o desdobramento mais óbvio para as situações hipotéticas (1) e (2) apresentadas anteriormente. Isto é, B, no quadro conflitante em que se encontra, provavelmente não perceberia as contradições existentes entre o enunciado irônico em (4) e o contexto da enunciação, inclusive os sinais explícitos de desaprovação. E, confiando naquilo que conhece, ou supõe saber – que A também está apaixonada, fatalmente iria sentar-se mais próximo da colega, que poderia reagir com outra ironia!
(9) A: Você quer sentar em meu colo?
Mas este enunciado também não esclarece para B a diferença de nível de compreensão e o fato de A tê-lo produzido pode muito bem ser o resultado da instalação de um novo quadro conflitante, que agora a envolve, ou seja:
1A produz outra ironia (9) porque não tem certeza de que B “sacou” a ironia anterior presente no enunciado (4).
Quer dizer que:
2B pode ter percebido a intenção irônica em (4) e agora está “brincando” com A ao se aproximar ainda mais. Brincar, aqui, é um jogo.
3B usa a estratégia da brincadeira para minimizar o transtorno causado por sua aproximação, transformando-a em situação “engraçada”.
4B sabe que A não sabe que ele (B) está “brincando”.
Na hipótese de que B dê a seguinte resposta para o enunciado (9):
(10)B: Sim!
Duas interpretações são possíveis (Y) e (Z):
1B ao responder com o enunciado (10) pode estar mentindo.
2A ao ouvir (10) interpretará como uma ironia.
3B ao responder com o enunciado (10) pode estar ironizando.
4A ao ouvir (10) interpretará como uma mentira.
4 ATÉ QUANDO?A situação conflitante que envolve A e B é inverossímil, mas tem o propósito de explicar, em um nível elementar, o valor da identificação da intenção comunicativa em uma interação a fim de preservar um mínimo de cooperação, compreensão e evitar o desentendimento. O que se viu, nesse simulacro de interação, foi um emaranhado de inferências, falta de sincronização, focalização e conclusões conflitantes. O resultado só poderia ser esse “diálogo de surdos” que pode avançar ao infinito na busca de significados “ocultos”. Nesse aspecto, a Pragmática constitui um recurso indispensável para investigar o deslocamento do que é regra (o entendimento) em exceção; e o que é exceção (o desentendimento) em regra. O colóquio automático de A e B , naturalmente, não é nem de perto o que acontece nas interações reais. Mas não deixa de constituir um recorte das várias “falas” que ocorrem no dia-a-dia da sociedade e nos ambientes organizacionais, onde se intercambiam momentos de lucidez e momentos de absoluta alienação nas interações. Sypher, citado por Mcluhan (1971, p.18) diz que diálogos dessa espécie representam o colapso da vida cotidiana, pois as pessoas falam, falam, e continuam a falar como se estivessem presas por uma espécie de amnésia. Somente o exercício pragmático de “pinçar” de dentro da trama social as contradições e manipulações resultantes do entrechoque de interesses e crenças pode nos aproximar das intenções comunicativas nas interações. Como bem observou Mey (1993, p.7): “ (...) se desejamos considerar o comportamento linguístico humano de forma plena e profunda, então a Pragmática é necessária”.
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